Sobre a Arte e a loucura – um ensaio (em forma de pensamentos livres).
O LOUCO E O POLITICAMENTE CORRETO
Antes de tudo, necessárias algumas palavras sobre o politicamente correto.
O politicamente correto tenta evitar as palavras “louco”, “loucura” etc. Prefere coisas mais elaboradas como “portador de transtorno mental”. Contudo, palavras amenas não curam delírios, alucinações etc. O estigma, acreditamos, não vem de uma palavra. Vem do preconceito que não desaparecerá, pensamos, apenas com a proibição de uma palavra. Aqui, portanto, sem ceder ao politicamente correto – que é bem-intencionado, mas parece inofensivo, utilizamos as palavras “louco”, “loucura” etc. como indicativas de doenças mentais graves, como esquizofrenia e outras situações, mesmo que temporárias, onde há perda do senso de realidade. Assim, também seria um exagero chamar uma depressão ou comportamentos induzidos por drogas de “loucura”. Por outro lado, chamar as coisas pelo que são – e não tentar disfarçá-las – talvez seja o primeiro passo para que se vença o preconceito. O segundo passo é tentar compreender estas coisas.
ARTISTAS LOUCOS X LOUCOS ARTISTAS
Infelizmente, existe uma triste distinção entre “artistas loucos” e “loucos artistas”.
Quando um artista já é/era conhecido como artista e só depois se descobre que é/era doente, ele é classificado como um “artista louco”, como Vincent van Gogh. Quando, entretanto, o diagnóstico é precoce e só então o indivíduo começa a pintar etc., ele é classificado como um “louco artista”. Isto quando se considera como verdadeira Arte suas obras. Comumente, entretanto, estes trabalhos são vistos tão somente ou como uma manifestação da doença ou, na visão mais benevolente, como uma forma de terapia.
![VAN GOGH, Vincent - Quarto do artista em Arles](https://ahistoriadaarte.com.br/wp-content/uploads/VAN-GOGH-Vincent-Quarto-do-artista-em-Arles-1024x584.jpg)
De certa forma, a distinção é válida. Pois artista é aquele que vive (ou tenta viver) de sua Arte. É um profissional, portanto. O doente mental que pinta, esculpe etc., porém não vive disto, não é, por este ponto de vista, um artista.
E, claro, também há o eterno debate sobre o que é Arte. Sobre o que é a Grande Arte. Arte, para alguns, é o que o artista diz que é Arte. Se o doente mental não está muito preocupado em impor os seus desenhos ou pinturas como “verdadeira” Arte, ele já começa perdendo, neste jogo de definições.
Quem fez o possível para derrubar estas distinções entre “artistas loucos” e “loucos artistas” foi Jean Dubuffet, pintor francês, ao criar o conceito de Arte Bruta. A Arte Bruta é aquela feita por autodidatas, livre, que corre às margens do sistema. A Arte feita por loucos se encaixa na definição mais ampla de Arte Bruta. E, como o próprio nome diz, a Arte Bruta é Arte! Não importa se feita por um amador “normal” ou um esquizofrênico internado em um hospital psiquiátrico.
Há quem defenda que o conceito de “Arte”, sendo tão difícil de cercar, deve ser deixado de lado. O que devemos nos perguntar é: esta Arte é boa ou não? E há Arte feita por doentes mentais que é muito boa, muito interessante! E, claro, há coisas bem sem-graça, assim como há na Arte feita por “normais”, mesmo que artistas renomados.
E há quem diga, por fim, que nem a qualidade importa, já que a avaliação dela é subjetiva. Arte é apenas o que é feito com um “intuito artístico”. Mesmo que banal, “bobinha”. Se o criador da obra quis fazê-la, mesmo que ninguém se importe, mesmo que ninguém queira comprar o quadro… Nada disto importa. É Arte, e pronto.
De fato, talvez devamos ir até mais longe do que Dubuffet e retirarmos a distinção entre Arte Bruta e o restante. Pois a verdade é que inúmeros quadros de artistas famosos, se nos fossem mostrados sem que a sua autoria fosse revelada, consideraríamos tolos, malfeitos, desagradáveis, ruins (especialmente se feitos por alguns artistas contemporâneos, que não prezam muito pela técnica). Ao passo que, se estes quadros estivessem numa mesma galeria misturados com obras de artistas classificados como praticantes da Arte Bruta, acharíamos que várias destas produções “brutas” foram feitas por “verdadeiros” artistas.
A “ARTE INGÊNUA” DE HENRI ROUSSEAU
O caso do francês Henri Rousseau (1844 – 1910) é emblemático. Rousseau era um pintor amador cujas telas, se vistas por um crítico, seriam ridicularizadas, naquela época. Porém Rousseau foi “adotado” por Pablo Picasso e seus amigos, que viram no seu “primitivismo” uma pureza que não havia no meio da Arte convencional. Henri Rousseau trabalhava em uma aduana (alfândega) e por isto recebeu o apelido de “O Aduaneiro”. É, de certa forma, uma maneira pejorativa de apontar que, bem, ele pinta, tem um talento cru e primitivo, mas não passa de um amador. Por outro lado, havia o desejo de empurrá-lo goela abaixo dos críticos esnobes. Rousseau é uma espécie de bode expiatório das culpas dos modernistas, dos seus próprios problemas de autoestima e aceitação. Assim, a Arte de Henri Rousseau recebe um selo, para ser aprovada: “Arte Naïf”, isto é, Arte “ingênua”. É ingênua, mas é Arte. É Arte, mas é ingênua. Nunca sairá deste limbo. Assim como os rotulados como representantes da Arte Bruta nunca receberão um reconhecimento de representantes da Grande Arte, o mesmo ocorrerá com os da Arte Naïf. Ambos são aceitos, porém nunca farão parte da “elite” artística.
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PS. Até onde se sabe, nunca se cogitou que Henri Rousseau tivesse algum problema mental. O caso é citado aqui apenas como exemplo da “bondade”, da benevolência dos artistas do sistema (de alguns deles, ao menos) com os artistas “outsiders”, com os que não seguem as regras de cada época.
VAN GOGH – A LOUCURA “SALVA” O ARTISTA
O caso do próprio Vincent van Gogh é exemplar da relação confusa entre Arte e loucura. Em vida, o artista vendeu apenas uma obra. Porém era, ainda assim, reconhecido como um artista. Um artista que estava tentando. A loucura aparece claramente no final da sua vida. Corta a orelha, dá um tiro no peito, morre. Se não tivesse tido esta vida trágica, a sua obra hoje valeria milhões? É bem provável que não. O estilo de Van Gogh era exótico demais, na época. Tanto que ainda inventariam um nome para ele: Expressionismo. Se Van Gogh tivesse morrido, digamos, em um acidente, se não tivesse tido os seus surtos, mas tivesse deixado as mesmas obras, ainda seria “o” Van Gogh? Provavelmente, não. Alguém poderia descobrir sua Arte, ela poderia ter algum reconhecimento atualmente, mas é difícil acreditarmos que valeria milhões. Assim, a loucura “salvou” o artista Van Gogh, transformou sua Arte (Bruta? Naïf?) em Grande Arte.
MICHELANGELO TINHA TRANSTORNO MENTAL?
Se pesquisarmos sobre “arte e loucura”, na internet, iremos nos deparar com listas como “6 artistas que que lutaram contra a doença mental”. Lá veremos nomes inesperados, como o francês Edgar Degas, o pintor das bailarinas, ou o italiano Michalengelo, o pintor do teto da Capela Sistina. Lemos o artigo com curiosidade. Degas, Michelangelo? Eram loucos? Desta não sabíamos! Ah, não. Degas, descobrimos ao ler o artigo, era um velho “recluso e rabugento” – e teve depressão em uma época de sua vida.
Depressão, assim como os transtornos de ansiedade, são doenças extremamente comuns, seja entre artistas, seja entre pessoas “comuns”. É necessário, portanto, colocar Degas nesta lista, aparentemente esta fase depressiva nem mesmo mudou de forma significativa sua Arte? Isto é, a inclusão de Edgar Degas parece apenas uma forma de sensacionalismo. Dito de outra maneira: se formos listar todos os artistas que já lutaram contra depressão, ansiedade, abuso de álcool etc., iremos incluir praticamente todos os artistas conhecidos! Assim como, “do lado de cá”, entre os não-artistas, deve ser muito difícil encontrar alguém que nunca preencheu os critérios para nenhum transtorno psiquiátrico.
E qual o problema de Michelangelo? Depressão, ansiedade… Às vezes passava dias sem comer. Algo mais? “Alguns estudiosos sugerem, com base no detalhismo observado em algumas de suas obras, que ele possa ter sofrido de transtorno obsessivo-compulsivo”. Ah, agora há esta também: a tentativa de diagnosticar qualquer comportamento, até mesmo uma escolha artística, como um sintoma de transtorno mental. O que seria então uma Arte “normal”? Existe um nível correto de detalhismo, para que o artista não seja considerado isto ou aquilo?
![MICHELANGELO - Detalhe da estátua "Davi"](https://ahistoriadaarte.com.br/wp-content/uploads/Estatua-de-DAVI-Michelangelo-detalhe-2-768x1024.jpg)
A PSIQUIATRIA NÃO POUPA NINGUÉM
A Psiquiatria – ou melhor dizendo, alguns psiquiatras – não poupa ninguém. Muito menos artistas. Artistas que entram para a História da Arte geralmente entram por um motivo: eles comumente quebraram as regras, enfrentaram o sistema, ousaram fazer diferente do que era esperado. Muitos dos artistas que hoje são considerados grandes só tiveram esta grandeza reconhecida após sua morte. Em vida, foram ridicularizados. Isto de não se adaptar ao sistema… já deve ser sintoma de algum transtorno mental, pensa o psiquiatra conservador.
Van Gogh, coitado, até simpósios médicos já foram organizados para se debater o seu diagnóstico. Inúmeras hipóteses já foram levantadas. Intoxicação pelas tintas, excesso de absinto, esquizofrenia, transtorno bipolar, epilepsia etc. etc. etc. Até aí, “tudo bem” – fora o fato de não deixarem sua alma repousar em paz. O problema mesmo começa quando se tenta associar o seu estilo a um problema mental. As ondulações no céu vistas no quadro “Noite estrelada” e as cores intensas em seus quadros seriam manifestações de alucinações psicodélicas. E por aí vai…
Parecem raros os psiquiatras (e neurologistas) nestes debates que separam as coisas. Por que a criativa e livre Arte do artista holandês não poderia ter brotado da parte sadia de sua mente? O pintor norueguês Edvard Munch, autor do famosíssimo “O grito”, viveu quase na mesma época de Van Gogh e, como este, também seria considerado um pintor expressionista. Munch teve, a determinado momento de sua vida, um colapso mental mais grave, precisou ser internado. Fora isto, lutava constantemente com a depressão, ansiedade, a angústia. Porém a obra de Munch é considerada uma representação da ansiedade, e não da loucura. Van Gogh teve depressão, ansiedade e um colapso mental, como Munch, mas sua obra é considerada um exemplo da loucura, para certos psiquiatras. Por que a diferença? Será por que Van Gogh deu um ou dois passos além de Munch, isto é, cortou a orelha e deu um tiro no peito? Contudo, onde difere a obra dos dois, se os dois são considerados expressionistas? Por que as distorções de Munch não são consideradas sintomas de alucinações? Por que as distorções de Van Gogh não podem ser consideradas, como as de Edvard Munch, opções deliberadas de um artista plenamente consciente do que estava fazendo?
Mais raro ainda parece ser o psiquiatra que enxergue o oposto dos colegas. Que as obras de Van Gogh não eram uma manifestação da doença, mas um sintoma de cura (mesmo que momentânea) de suas angústias e aflições.
O ROUBO DA “MONA LISA”
Talvez mais chato do que este eterno debate sobre o diagnóstico de Van Gogh seja apenas as teorias sobre a Mona Lisa. A cada seis meses surge uma nova hipótese sobre o suposto “mistério” do quadro, do seu sorriso. Mona Lisa não é famosa por causa do seu mistério. A obra de Leonardo da Vinci, verdade seja dita, só ficou tão famosa após ter sido roubada do Museu do Louvre, no começo do século passado. Até lá, bem, era um quadro até interessante de um artista importante. Mas não era a obra mais famosa do mundo. Após o seu roubo é que ela adquiriu esta importância. Quando foi recuperada, todos olharam para ela e subitamente ela se tornou “misteriosa”. Se não houvesse sido roubada haveria algum mistério no sorriso da Mona Lisa?
Acreditamos que não. É uma obra interessante de um artista importante. Talvez, no fundo, não mais do que isto. E qual o problema. Talvez a solução para o grande mistério da Mona Lisa seja este: não há mistério algum! E talvez ela esteja “rindo” justamente disto: dos tolos que ficam tentado encontrar algo a mais em seu sorriso…
EDMUND MONSIEL – ISTO SÓ PODE SER ARTE DE LOUCO!
O polonês Edmund Monsiel viu, no começo da 2a Guerra Mundial, seu cunhado ser assassinado pelos nazistas. Monsiel escapou da morte, mas a loja da família foi tomada por soldados alemães. Após a Guerra, Monsiel se tornou recluso. Quando morreu, foram encontrados 500 desenhos seus. Extremamente detalhistas e repetitivos. Muitos representando temas religiosos.
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Um psiquiatra viu os desenhos. Com base no comportamento “estranho” e nas obras de Monsiel, “diagnosticou”: esquizofrenia! Alucinações!
O “medo do espaço vazio” foi observado em seus desenhos. “É um sintoma!”, declarou o psiquiatra.
Há quem lamente, hoje em dia, que Monsiel tenha sido descoberto primeiramente por um psiquiatra e não por um crítico de Arte. E questione: qual o problema em ser muito religioso? Em ser meio antissocial? Por que necessariamente seus desenhos são traumas de guerra? Por que não um “sintoma de cura”, de busca de calma e paz, naquele ritual repetitivo de desenhar até mais de 3 mil rostos em um único pedaço de papel?
Para aquele psiquiatra, um desenho no qual sobrasse muito espaço vazio provavelmente também deveria ser sintoma de alguma doença. Qual a quantidade correta de espaço vazio um desenho deve ter, para que o artista seja considerado normal?
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