Medindo relativamente modestos 72 centímetros de largura por 85 centímetros de altura, “O Abaporu” provavelmente seja o mais conhecido quadro da pintora Tarsila do Amaral – e, certamente, uma das obras de Arte brasileiras mais famosas.
Além disto, ou por conta disto, “O Abaporu” é a tela brasileira mais cara da História, com valor calculado em 45 milhões de dólares – ou seja, mais de 200 milhões de reais! Como, na prática, a obra não está à venda, o seu preço atual é estimado pelo valor de um seguro que foi feito quando a tela viajou para uma exposição nos Estados Unidos.
!["O Abaporu", de Tarsila do Amaral](https://ahistoriadaarte.com.br/wp-content/uploads/2022/08/Abaporu-1928-858x1024.jpg)
Entretanto, a última venda do quadro foi efetiva por “apenas” 1,3 milhões de dólares, em 1995, para um colecionador argentino, chamado Eduardo Constantini – o leilão ocorreu na famosa casa Christie’s, sediada em Londres (Inglaterra).
Eduardo Constantini fundou, em 2001, em seu país natal, o MALBA: Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires. E para o museu, entre outras obras, doou o “O Abaporu” – que de lá não deve sair tão cedo, talvez nunca mais… O comprador, talvez para valorizar ainda mais a aquisição, diz acreditar que ela valha muito mais do que aqueles 45 milhões de dólares do seguro…
Antes de ir parar nas mãos de Eduardo Constantini, “O Abaporu” pertencia a um empresário brasileiro. Com a venda, o Brasil perdeu sua mais importante obra de Arte para o “rival” país vizinho.
Embora seja um ícone do Modernismo brasileiro, a obra não esteve presente na famosa Semana de Arte Moderna de 1922. Longe disto. Na verdade, nem Tarsila estava no Brasil, na época do evento – estava em Paris (França), justamente estudando os movimentos modernistas europeus.
![Tarsila do Amaral](https://ahistoriadaarte.com.br/wp-content/uploads/2022/08/Tarsila-do-Amaral-2-edited.jpg)
“O Abaporu” foi pintado apenas em 1928, como um presente de Tarsila para seu então marido, o poeta modernista Oswald de Andrade. A artista levou alguns meses produzindo a obra, em segredo.
Porém a obra não tinha nome, ainda. Oswald, no mesmo dia em que ganha o quadro de presente, mostra a tela a Raul Bopp, também poeta, que sugere: “Vamos criar um Movimento em torno desta obra?” Os dois enxergam na tela uma espécie de índio (ou índia?) canibal. Tarsila gosta da interpretação e corre para um dicionário de tupi-guarani – e ali encontram o nome para a pintura que, nem imaginavam eles naquele momento, décadas depois seria um ícone da Arte Brasileira: “aba” (homem), “pora” (gente) e “ú” (comer). “O Abaporu”, “o homem que come gente”!
Nas semanas seguintes, Oswald e Tarsila idealizariam o Movimento Antropófago – isto é, “canibal”: “comeriam” todas as influências modernas e as digeririam, porém sobre um conteúdo de raízes nacionais. Ilustrando o “Manifesto Antropófago”, escrito por Oswald, estava o “O Abaporu”. O Manifesto foi escrito na forma de frases soltas, como num fluxo de pensamento, frequentemente sem sentido claro.
O manifesto tem um tom rebelde, porém às vezes bem-humorado – embora um humor questionável. Por exemplo, é datado como do “ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha”. Pero Fernandes Sardinha, vindo de Portugal, chegou ao Brasil em 1551, sendo nomeado o primeiro bispo do país. Cinco anos depois, tendo de viajar para Portugal, a sua embarcação naufraga e os passageiros são “resgatados” por índios caetés – que os assassinam e os comem.
No ano seguinte ao Manifesto, Tarsila pintaria uma tela que chamaria exatamente de “Antropofagia”.
No começo da década seguinte, entretanto, acaba-se o casamento – e a parceria criativa e intelectual – de Tarsila e Oswald. Naquele momento de dividir os bens, Oswald devolve o “Abaporu” a Tarsila – em troca, fica com um quadro que, à época, valia mais, “O enigma de um dia”, do pintor surrealista italiano Giorgio de Chirico.
Daí em diante, o “Abaporu” apareceria em várias mostras da artista.
Tarsila morreria em 1973, mas já na década de 1960 havia vendido a tela para Pietro Maria Bardi – que havia fundado o MASP, Museu de Arte de São Paulo, em 1947.
A pintora queria que a obra integrasse a coleção do Museu, e por isto vendeu a obra por um valor abaixo do que pensava que valia – porém o comprador do “Abaporu” logo revendeu para um colecionador por um valor bem mais alto. Conta-se que Tarsila do Amaral teria ficado muito contrariada com tudo isto.
Este segundo comprador, em 1984, passou a obra para o galerista Raul Forbes por 250 mil dólares – o que hoje parece “pouco”, mas era então o valor mais alto já pago em uma obra de Arte nacional. Forbes seria o último proprietário brasileiro da obra e a sua venda para Constantini estabeleceu novo recorde para uma obra nacional.
A venda para o argentino não ocorreu sem alguns protestos. Houve mesmo um movimento tentando tornar “O Abaporu” um patrimônio nacional – que não poderia sair do país, portanto. Sem sucesso.
“O Abaporu” ainda entraria em solo brasileiro algumas vezes, por empréstimo para alguma exposição – em 2019, apenas, finalmente apareceu temporariamente no MASP, onde Tarsila desejava que repousasse eternamente.
Conta Tarsilinha do Amaral, sobrinha-neta da artista, que em certa ocasião a ex-presidente Dilma Roussef perguntou a Constantini quanto custaria a “repatriação” do “Abaporu”. Tarsilinha, que afirma ter presenciado o diálogo, afirma que Constantini teria respondido: “Duzentos milhões” – de dólares! Em valores de hoje, cerca de 1 bilhão de reais!
Embora há quem patrioticamente lamente que “O Abaporu” não esteja no Brasil – assim como a mais importante obra italiana, a “Mona Lisa”, de Leonardo da Vinci, está no Museu do Louvre, em Paris – há quem veja isto com bons olhos. Talvez se a obra estivesse por aqui não a valorizaríamos tanto!
Entretanto, entre as obras nacionais efetivamente comercializadas, o recorde atual pertence a outro quadro de Tarsila do Amaral, “A lua”, também pintado em 1928 e comprado em 2019 pelo MoMA, Museu de Arte Moderna de Nova York (Estados Unidos), por 20 milhões de dólares – o que mostra o prestígio internacional da artista.
SIGNIFICADO DE “O ABAPORU”
Sendo uma obra tão importante, “O Abaporu” já foi objeto de diversas interpretações por críticos de Arte – teorias aparentemente muito profundas, mas que por talvez passarem longe das intenções da artista ao pintar o quadro (se é que ela tinha alguma, além do próprio deleite estético) deixaremos para outro momento – acredite, boa parte destas interpretações são verdadeiros tratados de Sociologia, Filosofia e Política…
A sua sobrinha Tarsilinha, pode ser, talvez, a pessoa que tenha chegado mais perto da compressão do significado do “Abaporu”. Em seu livro “Abaporu: uma obra de amor”, ela propõe que o quadro era um nu da própria artista – o que explicaria tanto o presente para o marido quanto a sua recuperação quando da separação.
Uma das interpretações teóricas da obra diz que ela a cabeça pequena e as mãos e pés gigantes representam o trabalhador – portanto, o quadro seria uma crítica social. Nada disto, garante Tarsilinha – na casa da artista havia um espelho que deformava justamente a cabeça de quem estivesse à sua frente. Tarsila pode ter se maravilhado com isto, após um longo tempo se observando. “Ela sabia perceber a poesia nos detalhes, tinha esse faro artístico aguçado de quem não enxerga o óbvio nas coisas, mas vai além. Seus olhos de pintora se encantaram com aquela visão inusitada, diferente e, por isso mesmo, interessante. Aquela imagem ficou gravada em sua retina, grudada em seu pensamento. Tornou-se uma insistente obsessão.”
RELEITURAS DE “O ABAPORU”
Sendo a mais importante obra de Arte brasileira, “O Abaporu” obviamente já foi homenageado (ou “vítima”…) de várias releituras.
Romero Britto, talvez o artista brasileiro mais famoso da atualidade, amado por alguns e odiado por outros, foi um dos que já se aventurou a fazer uma releitura da pintura de Tarsila do Amaral.
![Romero Britto - Abaporu [releitura]](https://ahistoriadaarte.com.br/wp-content/uploads/Romero-Britto-Abaporu-releitura.jpg)
Outras releituras aqui .
A IMPORTÂNCIA DE “O ABAPORU”
“O Abaporu” não é importante porque é valioso. É o contrário: é a obra de Arte brasileira mais cara porque é importante.
Com “O Abaporu”, de fato, Tarsila do Amaral não tinha a intenção de “revolucionar a Arte brasileira”. Naquela época, pipocavam movimentos artísticos na Europa, cada um reivindicando para si a última e definitiva forma de se fazer Arte. Tarsila, claro, estava influenciada por estes movimentos e, realmente, desejava criar algo relativamente novo por aqui, novo fora de Europa: absorver as influências externas e mesclá-las com a brasilidade. Porém “O Abaporu” não era para ser exposto, muito menos para ser vendido. Era um presente para o seu marido. Era um gesto de amor, talvez.
Contudo, tanto Tarsila do Amaral quanto Oswald de Andrade se encontravam imersos em um meio cultural efervescente. Assim, com sua força, “O Abaporu” naturalmente saiu das paredes do lar do casal e se tornou um símbolo, deu origem a um movimento. E se tornou, desta maneira, a mais icônica representação do Modernismo brasileiro.
É por isto que vale tanto.
SAIBA MAIS
Para conhecer a vida da artista e outras obras famosas suas, clique aqui: TARSILA DO AMARAL.
Para conhecer a fantástica história da mulher que, roubando quadros de Tarsila e outros artistas, aplicou um golpe de mais de 700 milhões de reais na própria mãe, clique aqui: “Os quadros ‘roubados’ de Tarsila do Amaral”.