A ARTE PRÉ-HISTÓRICA
“História” pode ser definida assim: “a evolução da humanidade ao longo de seu passado e presente; sequência de acontecimentos e fatos a ela correlatos” (Houaiss). Friso as palavras “evolução” e “sequência”. Neste sentido, não se pode falar de uma “História” da Arte Primitiva porque os eventos que dela conhecemos não se ligam uns aos outros, são esparsos. Temos apenas objetos encontrados aqui e acolá, feitos por povos que quase nada sabemos de suas condições reais de vida, de suas crenças, de sua personalidade.
Não teríamos nem como situar o início real desta eventual História, já que não sabemos qual foi o primeiro objeto artístico a ser produzido e este pode nunca ser encontrado, pois pode ter sido destruído pelo tempo. O que temos desta “História”, portanto, são achados isolados, que nem mesmo podem ser datados com precisão.
De qualquer forma, estes achados nem têm conexão direta com a História da Arte Ocidental, porque, nesta, o máximo que possamos regredir seja aos egípcios (viemos dos romanos, que devem muito aos gregos, que tiveram contato com os egípcios). Estes objetos de arte primitivos, portanto, tem a ver com uma história maior, a História do Homem, do ser humano.
O Homo habilis, provável evolução do Australophitecus, surgiu há uns 2,5 milhões de anos, na África. Dele veio o Homo erectus, há 1,5 milhões de anos. O Homo sapiens arcaico surge há uns 400 mil anos e, possivelmente, dá origem ao Neandertal (há 125 mil anos) e ao Homem de Cro-Magnon, do qual, finalmente, nasceria nossa espécie, o Homo sapiens sapiens. Surgimos, acredita-se hoje, há apenas uns 90 mil anos, talvez primeiramente na África também. E andamos. Ocupamos a Oceania há uns 40 mil anos e a América apenas há 10 mil anos (embora deva ter havido uma onda anterior de ocupação, aqui), descendo da América do Norte para a do Sul. Obviamente, há muita discussão sobre a exatidão destas datas.
Espécies como o Neandertal e o Homo sapiens arcaico já tinham alguns comportamentos que hoje diríamos serem “humanos”. Não seria surpreendente se descobrissemos que talvez tenham feito algo com um senso estético – talvez a Arte nem seja uma invenção humana, portanto (vide a Vênus de Tan-tan, adiante).
Divagamos… A história do sapiens sapiens ruma para 100 mil anos e sabemos muito pouco do que aconteceu na maioria deste período (aliás, até há pouco tempo se acreditava que tínhamos surgido há apenas 40 mil anos).
O homem, desde quando surgiu, tinha um caráter nômade, indo sempre para onde a comida (caça, especialmente) estivesse se movendo. Mas também perambulava porque era curioso e desbravador. A agricultura começa a surgir há apenas uns 10 mil anos, e é o que propicia o surgimento das primeiras vilas, que virariam cidades, que virariam civilizações. Ainda não há escrita, nestas primeiras civilizações – portanto, não há registros fiéis destas épocas e, por consequência, não há “História”. Embora o melhor termo fosse “Pré-escrita”, chama-se genericamente de “Pré-História” tudo o que se passa antes de, aproximadamente, 3500 anos antes de Cristo, época em que os egípcios passaram a registrar sua História com os hieróglifos.
Objetos datados de antes deste período são considerados, portanto, pré-históricos, embora já demasiado humanos, pois existimos há quase 100 mil anos.
A Arte deste período é chamada de “Arte Pré-Histórica”, “Arte Primitiva”, “Arte Rupestre” (do latim “rupes”, rochedo), a depender do autor. Ainda existem povos que vivem de maneira primitiva, e sua arte pode ser chamada de primitiva, portanto – por outro lado, como estão produzindo hoje, nada nos impede de chamá-la de “arte contemporânea”… Preferimos aqui o epíteto “Arte Primitiva”, por não concordarmos muito com a contradição de se falar de uma “História da Pré-História”. Primitiva no sentido de primeira a existir, inicial, inaugural.
É possível que nossos ancestrais, sem muito teorizar, muito menos escrever ensaios intitulados “O que é a Arte?”, já produzissem objetos com fins puramente estéticos, voltados à contemplação e fruição. Artistas antes da Arte, a verdadeira “vanguarda”. É provável, entretanto, que a maioria destes objetos tivessem também fins “religiosos” ou mágicos os mais diversos (vodu, curas, vida após a morte etc.). Obviamente, pouco se pode afirmar sobre a real intenção destes nossos antepassados.
E, como dito, não se pode formar uma “História” com achados esparsos. Mas alguns são tão interessantes que vale a pena citá-los.
Vênus de Willendorf
Acredita-se que nas religiões primitivas o papel de “Deus” fosse ocupado pela figura feminina, talvez pelo fato da mulher dar à luz. Algumas sociedades pré-históricas podem ter sido matriarcais, isto é, comandadas por mulheres. Estas crenças foram fortalecidas e representadas por achados, em várias partes do globo, pelas chamadas “Vênus”, estatuetas que representavam mulheres “férteis”, isto é, comumente rechonchudas. As Vênus podem representar algo divino ou algo mais terreno: a mulher que chefiava a tribo.
Estas pequenas estátuas recebem o nome “Vênus” não apenas em homenagem à deusa romana de mesmo nome, que representava a beleza e o amor (equivalente da grega Afrodite
), mas numa clara referência a outras obras de Arte famosas, como “O nascimento da Vênus”, de Sandro Botticelli.
Uma das mais antigas destas Vênus pode ser a Vênus de Hohle Fels (nome da gruta em que foi encontrada), ou Vênus de Schelklingen (nome da cidade alemã onde está a gruta), de
apenas 6 centímetros de altura, feita em marfim de mamute, e descoberta muito recentemente, apenas em 2008. A Vênus de Hohle Fels pode ter mais de 35 mil anos.
Uma destas Vênus pode ajudar a provar que antepassados do ser humano já tinham religiões e Arte arcaicos. A Vênus de Tan-Tan (nome da região em que foi encontrada, no Marrocos) foi achada em 1999, tem 6 centímetros de altura e um desenho feminino bem primitivo, em uma pedra chamada quartzito. Há resquícios do que foi uma coloração com ocre. Pasmem, acredita-se que ela pode ter sido feita entre 200 e 400 mil anos atrás! Há quem defenda, entretanto, que a forma tenha sido “esculpida” pela natureza, e nós é que estejamos querendo enxergar nela as mãos de hominídeos. (Há uma posição intermediária: houve ação humana, mas bem mais recente.)
Não tão antiga, mas bem mais conhecida, é a Vênus de Willendorf (nome da cidadela austríaca em que foi encontrada, em 1908). Foi feita em um calcário que não existe na região e pintada de ocre. Foi feita a 22 a 24 mil anos atrás. Também é conhecida como “Mulher de Willendorf”, pelos que apontam o paradoxo de associar o nome de “Vênus” a uma mulher tão obesa (ou grávida) – pode ser que o padrão de beleza da época fosse este, mas, na época grega, certamente não era.
(imagem)
A Vênus de Willendorf pode ser vista no Museu de História Natural de Viena, na Áustria. A estátua não pára em pé sozinha. Por isto, especula-se que pudesse ser um amuleto, a ser transportado. Como quase sempre no que se refere a fatos tão longínquos, sempre surge alguém querendo se destacar com alguma teoria esdrúxula: um disse que a estatueta seria utilizada em rituais de fertilidade, sendo então enfiada na vagina…
Mas, curiosamente, a primeira Vênus a ser descoberta, em 1864, recebe o nome de “Vênus impudica” justamente por possuir uma grande abertura vaginal. E era magra, mas o fato de tantas Vênus terem seios e nádegas tão avantajadas faz alguns especularem que estas estátuas não têm nada a ver com poder feminino ou religião, mas seriam, isto sim, a primeira forma de pornografia criada pelos homens. De fato, em época de alimentação escassa, antes da agricultura, mulheres obesas não deveriam ser comuns – e sua existência pode ter gerado um fetiche. Conclusão: com tantas teorias, nenhuma é fiável…
A mais famosa de todas as Vênus, entretanto, não é nenhuma das cerca de 200 figuras primitivas já encontradas: é a Vênus de Milo, que é bem mais recente – é uma escultura grega, datada de cerca de 130 a. C.
A Pintura Rupestre
Os desenhos nas cavernas de Altamira (Espanha) e Lascaux (França) podem servir como âncora inicial para nossa História da Pintura Ocidental.
(imagem – visão geral)
Certamente estes desenhos não marcam a primeira vez que um ser humano utilizou suas mãos para rabiscar algo. Nunca teremos como saber qual foi este momento mágico – talvez tenha sido um desenho na areia de uma praia no litoral africano, que o mar apagou… Mas os desenhos de Altamira e Lascaux são marcos porque são vastos, bem concentrados, e de datação relativamente segura.
Os desenhos nestas cavernas foram feitos por volta de 10 a 15 mil anos antes de Cristo. Alguns desenhos são bem mais antigos que outros, o que demonstra que várias gerações de homens utilizaram aquelas cavernas com objetivos semelhantes.
Caverna de Altamira
Os desenhos em Altamira foram descobertos em 1879, por um arqueólogo espanhol e sua filha. Não foram as primeiras manifestações artísticas pré-históricas a serem descobertas, mas foram as mais vastas, até então, o que gerou dúvidas, na época, sobre sua autenticidade
– o grande realismo dos desenhos também intrigava os céticos. Hoje, tais dúvidas foram dissipadas.
Talvez muitos se assombrem tanto com estas cavernas porque temos uma tendência a confundir pré-histórico com “pré-humano”. Ora, se o sapiens sapiens, isto é, nós, surgimos há 100 mil anos, é provável que desde então, embora não tivéssemos o domínio das técnicas, tivéssemos já quase todas as potencialidades de agora. Objetivamente, os desenhos de Altamira e Lascaux são apenas desenhos de bichos regularmente bem feitos, mas nada assombrosos se lembrarmos que foram feitos por humanos como nós. Não há habilidade especial na sua realização. Talvez o fato de terem sido encontrados em cavernas piorem o entendimento: ligamos a expressão “homem das cavernas” com os conceitos de “antepassados”, “quase humanos” (estes, na verdade, nem sempre viviam em cavernas) e talvez pensemos, sem muito pensar, que os desenhos de Altamira e Lascaux foram feitos por longínquos “quase humanos”. Não, foram feitos por homens, num passado relativamente recente, pouco antes (relativamente, novamente) das estupendas, estas sim, pirâmides egípcias.
A suposta “qualidade técnica” destes desenhos, portanto, não deve ser motivo de assombro. Mas eles não deixam de ser emocionantes. Afinal, são parte dos poucos registros que temos de nossos antepassados próximos. Foram feitos por tribos que, provavelmente, logo mais dariam origem a importante parte do povo europeu atual. E como há um pouco de Europa em cada um de nós, do Ocidente, há também um pouco de nossa história em Altamira e Lascaux. Nestas cavernas pode estar o início rastreável da História da Pintura.
Os desenhos em Altamira, acredita-se, foram feitos de 17 a 14 mil anos atrás. Há uns 13 mil anos a queda de uma rocha fechou a sua entrada.
A caverna de Altamira é dividida em três partes principais: o vestíbulo, entrada mais aberta, que provavelmente algumas gerações utilizaram de refúgio ou mesmo morada. Há, mais profundamente, uma grande “sala” da qual partem, enfim, pequenas ramificações. O comprimento total da caverna é de 270 metros. Há poucas pinturas nas ramificações finais. A maioria das obras está mesmo na sala que foi apelidada de “Capela Sistina”, uma homenagem à famosa obra de Michelangelo.
Esta grande sala tem 18 metros de comprimento por 9 de largura. Seu piso foi escavado para que aumentasse a altura deste ao teto, de modo que melhorasse a observação das pinturas, que representam, comumente, animais. O mais presente é o bisão (16 unidades).
Dissemos que a qualidade destes desenhos não deve ser motivo de assombro, porque, afinal, eram homens desenhando, e não macacos. De fato, são bastante rudes se comparados com a pintura extremamente realista que se pode fazer de um boi hoje. Por outro lado, considerando-se a História da Pintura, é admirável que tais artistas, anônimos, ali já realizaram proezas que muitos séculos depois seriam saudadas como “novidades”, como um certo uso da perspectiva e a busca do realismo. Em Altamira duas figuras chamam a atenção: “A grande fêmea de cervo”, por seu tamanho (2,25 metros, o maior desenho da caverna); e “O bisão encolhido”, onde o artista (ou seria “a” artista?), encontrando uma distorção na superfície da rocha, soube aproveitá-la para encaixar a figura.
(imagem – bisão)
Caverna de Lascaux
As pinturas de Lascaux, na atual França, foram descobertas apenas em 1940, por alguns adolescentes. Sua extensão total é de 235 metros, e algumas partes recebem nomes que remetem à arquitetura de uma igreja, como “Nave” e “Abside”. Há impressionantes cerca de 6 mil animais desenhados em Lascaux, sendo o mais frequente o cavalo – mas também há inúmeras figuras geométricas e até o ser humano chega a ser representado. Nas partes mais profundas da caverna, há felinos e até, aparentemente, um urso desenhado. Os desenhos mais antigos em Lascaux devem ter sido feitos há uns 17 mil anos; os mais novos, há uns 15500.
Logo na entrada da caverna depara-se com a “Sala dos Touros”, onde alguns desenhos têm até 5 metros de comprimento. Uma figura que se assemelha a um unicórnio deu origem a várias especulações…
Alguns dos desenhos de Lascaux, pela sua altura, talvez necessitaram de “andaimes” para serem feitos. Há desenhos também em outras áreas de difícil acesso.
Em Lascaux também encontramos um rosto de cavalo pintado de frente, feito raro na arte do Paleolítico (período pré-agricultura, isto é, antes de 10 mil antes de Cristo; o que se segue depois é chamado de Neolítico). Na Abside há a única rena desenhada em Lascaux e, no Poço, a figura mais misteriosa da caverna: um homem com cabeça de pássaro e pênis ereto, fazendo parte de uma composição mais complexa (uma história mitológica?), construção também rara no Paleolítico.
Os visitantes de Lascaux respiravam, e o gás carbônico gerado começou a deteriorar a pintura. A caverna foi, então, interditada ao turismo. Quem desejar (e não se sentir meio tolo), pode visitar uma réplica feita nas proximidades, chamada Lascaux II.
Por que foram feitos os desenhos em Altamira e Lascaux? Não há resposta definitiva. Supõem alguns, fazendo analogia com povos não-civilizados atuais, que pudessem ter função mágica ou religiosa. Mas não se pode descartar com segurança as hipóteses lúdica e estética. “Arte pela Arte”.
Dar nomes religiosos, e o pior: católicos, a Altamira e Lascaux talvez não tenha sido uma boa idéia, pois toma como certo (a função das pinturas) o que pode não passar de uma boa hipótese (bisões eram deuses?). Reforça em crença o que é especulação.
Sítios Arqueológicos brasileiros
Importantes sítios arqueológicos foram descobertos no Brasil, há poucos anos.
Na cidade de São Raimundo Nonato, no Piauí, na Serra da Capivara, está o sítio Boqueirão da Pedra Furada. Suas pinturas datam de, possivelmente, 12 mil anos, até, quem sabe, 29 mil anos atrás. O achado destas pinturas foi uma reviravolta na antiga teoria de o homem só teria chegado na América há 10 mil anos, mas ainda há discussão acalorada sobre a datação exata destas pinturas.
Estas pinturas, ao contrário das de Lascaux e Altamira, frequentemente retratam cenas. Ou seja, podem ser mais antigas e, apesar disto, mais desenvolvidas conceitualmente que as européias.
(imagem)
Há cenas de caça, de dança etc. Fatos cotidianos. Os animais representados são emas, tucanos…
O sítio Boqueirão é aberto à visitação.
Há outros sítios importantes dispersos pelo Brasil, mas a maioria destes traz obras mais recentes, do Neolítico. Muitos dos desenhos primitivos brasileiros não foram feitos em áreas reclusas, de difícil acesso. Isto é mais um contraponto à teoria de que os desenhos primitivos demarcassem sempre “santuários”, que não fossem objetos de “exposição” para a coletividade.