Muita gente torce o nariz para a Arte Contemporânea. Um dos argumentos mais comuns para explicar a aversão é: “Isto, até meu filho de cinco anos faria!” Outro é: “Ele faz isto apenas para aparecer!”
De fato, vivemos em uma época em que, aparentemente, as pessoas fazem de tudo para “aparecer”. De tudo mesmo! O que importa é o número de seguidores no Instagram – mesmo que o resto da humanidade ache ridículo o que você faz, não importa, desde que tenha ao menos um milhão de pessoas curtindo as suas fotos, tudo bem!
No mundo da Arte, entretanto, este desejo de “aparecer”, de chocar, já vem há algumas décadas, aparentemente. Talvez, claramente, desde o início do século 20.
Até o surgimento do Impressionismo, no final do século 19, os artistas não queriam, a grande maioria deles, contestar o sistema. Pelo contrário, eles queriam é ser aceitos. Pelos críticos e, especialmente, pelos que pagavam por seus quadros – e, assim, nada restava a não ser atender aos gostos da elite. Gostos que eram convencionais. Gostos que, se mudavam, mudavam muito vagarosamente.
Então vieram os impressionistas. Que fizeram algo bem fora do sistema. Foram, a princípio, ridicularizados. Mas, de forma até acelerada, caíram no gosto do público – e, logo, de quem comprava obras de Arte. Isto abriria as portas do Inferno da Arte.
A geração seguinte, nas décadas seguintes, resolveu testar um pouco mais o público e o sistema. Vieram o Expressionismo, o Cubismo e outros “ismos”. Olhando-se retrospectivamente, a chegada do Abstracionismo era questão de tempo, apenas. E ele chegou, muito rapidamente.
No meio desta História, também houve Duchamp, com seu mictório, que questionava o que era Arte.
Até aí, “tudo bem”. Estes artistas ainda estavam realmente fazendo Arte, com “A” maiúsculo. Pensando, indagando, testando. Tanto é que nomes como Van Gogh, Pablo Picasso, Kandinsky e Mondrian estão em todos os livros de Arte e suas obras valem milhões – mesmo que seu filho de cinco anos faça igual. Picasso, afirma-se, disse: “Quando eu tinha 15 anos sabia desenhar como Rafael, mas precisei de uma vida inteira para aprender a desenhar como as crianças.” E é por isto que os rabiscos do seu filho nunca valerão milhões. Porque o que Picasso etc. fizeram não foi espontâneo – foi um movimento muito bem calculado de trazer para o artista algo que, em 600 anos de História da Pintura, algo que ele nunca teve: a liberdade!
Contudo, esta liberdade, paradoxalmente, trouxe consigo, quase que instantaneamente, a morte da Arte. Pois se o artista podia fazer tudo, se tudo que qualquer um fizesse poderia ser chamado de Arte – basta chamar de “Arte” – a Arte perde totalmente o seu valor.
E desde então o que vemos são piadas repetidas. A piada contada por Duchamp repetida mil vezes. Como as infinitas reproduções de Marilyn Monroe feitas por Andy Warhol.
A graça já se foi há muito tempo. E, assim, comumente têm razão aqueles que dizem que “ele só quer aparecer”.
Como aparecer, num mundo onde todo mundo tem voz? Chocando cada vez mais. E se eu fizer uma obra com meu próprio sangue? Com minha urina? Com meu sêmen? E se eu fizer uma obra… com minha merda? Algum idiota compraria?
Acontece que até mesmo a piada provavelmente mais extrema com o sistema, esta da merda, já foi feita há um bom tempo. Mais exatamente, em 1961, pelo italiano Piero Manzoni, que embalou 90 latas com suas fezes e chamou a obra, sem rodeios, de “Merda do artista”. As latas eram vendidas, literalmente, a peso de ouro – e hoje valem muito mais! Quem investiu em ouro, na época, perdeu uma boa oportunidade, portanto.
Assim, um artista que hoje resolva chocar a audiência com sangue, sêmen ou merda, ou não conhece a História da Arte ou age de má-fé. Para chocar aqueles que não conhecem a História da Arte e que ainda se chocam com piadas repetidas.
(Necessário esclarecer: a ação de Piero Manzoni não foi exatamente uma “piadinha”. Parece mais um ato de revolta extrema, de vingança contra os idiotas. O ponto final da História da Arte, da crítica, da impostura.)
É por isto que é difícil, para muitos – e com razão – aceitar que um quadro de Mark Rothko possa valer milhões. De um Romero Brito. Qualquer bobagem feita por Damien Hirst. “De novo, esta piada?”
O artista, hoje, portanto, vive num limbo. Por um lado, basta declarar-se “artista” e tudo o que fizer tem de ser considerado “Arte” – e ser tão respeitado quanto um Da Vinci – ou, pelo menos, tanto quanto um Malevich. A crítica é obrigada mesmo a engolir tudo, de um século para cá. Mas o público, não! Assim, lá no fundinho, ou nem tanto assim, muitos artistas sabem que o que estão fazendo é uma grande bobagem, descartável, batido. Que nunca serão um Da Vinci – nem mesmo um Malevich.
Se rodarmos o filme “A vida do artista” do presente para o passado, portanto, veremos ele, nesta primeira cena, confuso, em uma crise de identidade. Um século atrás, ele estava no auge. Picasso foi um dos maiores pop stars do século 20.
Contudo, antes deste auge, ele era tímido. Vinha se soltando aos poucos. Manet, coitado, foi considerado um revolucionário – mas ele só queria ser aceito pelo sistema! Coubert, um pouquinho antes, este não, queria mesmo peitar a crítica.
Esta história do nascimento do artista, do nascimento do conceito de “artista”, é interessante. É uma história que dura uns seis séculos. Na Idade Média, não havia artistas, havia artesãos. A diferença inicial era muito pequena. O artesão fazia as obras exatamente como era “ordenado” a fazer. Não colocava um toque pessoal nelas. Muito menos as assinava – já que todos os artesãos faziam as mesmas obras.
A História da Pintura começa por volta da metade do século 13. A História da Arte Ocidental começa aí. Com Cimabue, Duccio, Giotto, pintores italianos que ousaram começar a se afastar – bem pouco, a princípio – do padrão que vigorava, a Arte Bizantina.
Os primeiros pintores italianos ousaram um pouco na maneira em que representavam as cenas – começaram a estudar volume, perspectiva, contra uma representação bizantina que era bidimensional, “chapada”. Mas, vivendo no centro do poder católico, eles não tinham liberdade temática alguma: tinham de representar cenas bíblicas.
Em Flandres, dois séculos depois, menos apegados à Igreja, é que os artistas encontram mais possibilidades temáticas – podendo pintar, inclusive, gente comum, fazendo coisas comuns.
São nestes primeiros séculos da História da Pintura que encontramos, portanto, os “primeiros”. O primeiro a assinar seu nome em uma obra. O primeiro a ficar famoso. O primeiro a virar artista oficial de uma cidade, de uma corte, do Papa. O primeiro a ficar rico. O primeiro a ter coragem de fazer um discreto autorretrato escondido no meio de uma multidão.
Com a História da Pintura, portanto, nasce junto a História dos Pintores.
Giorgio Vasari, em seu livro “Vidas dos artistas”, em 1550, captou muito bem o espírito do tempo. O nascimento do artista casa com o nascimento do “homem” (ser humano), livre pensador, questionador dos poderes estabelecidos. Eis o Renascimento – não apenas na Arte, mas cultural. A Terra não será mais o centro do Universo, a Igreja não será mais a dona de todas as almas, o mecenas não ditará tudo o que o artista fará.
Porém ainda ditará muito, e por muito tempo. Estes primeiros grandes artistas conquistaram sua fama não por ousarem contra o sistema, mas por “ousarem a favor”. Dando à elite o que não existia, ainda, na Arte (como a perspectiva, o realismo), mas que ela “queria, sem saber que queria”.
O nascimento do artista, portanto, não começa como uma história de contestação, mas de um exercício de criatividade que, por sorte, acabou por ser muito bem aceito.
Que não se pense, entretanto, que a História do Artista foi uma história linear, progressiva, com “direitos adquiridos” irrevogáveis. Pelo contrário, foi uma história de avanços e retrocessos, idas e vindas: dois passos para a frente e um para trás. Se a contamos de uma forma que aparenta ser linear, é apenas para simplificar a narrativa. É óbvio que sempre existiu críticas, situações em que um artista foi exposto ao vexame, à humilhação. Se fosse fácil a emancipação, se fosse um caminho sem obstáculos, não teria levado seis séculos!
Após os dois primeiros séculos, entretanto, chegamos a um ponto chave. Um salto ousado. Pequeno, minúsculo, ridículo nos dias de hoje, mas que temos que ver dentro daquele contexto. Onde assinar seu nome no canto da obra ainda era para poucos.
Chegamos a Jan van Eyck e seu “Retrato do casal Arnolfiini”. A obra é envolta em dúvidas, controvérsias. Se representa um casamento, se a noiva estava grávida, se ela havia morrido etc. etc. etc. Não é o que importa, aqui. O que importa aqui é Jan van Eyck.
O flamengo foi o primeiro a “dizer”, em suas obras, com literalmente quase todas as letras: “Eu sou Jan van Eyck, eu sou um Artista”. Com “A” maiúsculo.
No meio da famosa pintura há um espelho. Olhando-se com atenção, no espelho há duas pessoas, pequenas, refeltidas. Uma, especula-se, é o próprio artista, trabalhando. Mesmo que minúscula a auto-representação, já seria ousada. Colocar-se no meio de um quadro que ele foi pago para fazer? O artista é pago para pintar um casal, apenas o casal, e coloca-se no meio da cena?
Porém, até aí, “tudo bem”. Era pequena a ousadia, quase envergonhada… Mas Jan van Eyck não se contenta com isto.