Édouard Manet nasceu em 1832, em Paris, capital da França.
Seu pai era um alto funcionário do governo (algumas fontes dizem que era juiz; outras, mais modestas, que era funcionário do Ministério do Interior); sua mãe, filha de diplomata. O casal teria três filhos.
Conta a história que a bem-sucedida família de Manet o pressionava, quando ele ainda era adolescente, para que ele seguisse o caminho do Direito. Porém ele manifestava o desejo de tornar-se artista, ideia que era repudiada pelos seus familiares. A culpa pela discórdia pode ser atribuída a um tio materno de Manet, que todos os domingos o levava ao Museu do Louvre.
Algum consolo os familiares de Manet enfim encontraram quando ele resolveu entrar para a Marinha – porém o jovem não conseguiu passar no teste da Escola Naval.
Com 17 anos, Manet veio parar no carnaval carioca! Sem ter desistido ainda da vida nos mares, ele havia embarcado como aprendiz de piloto em um navio cargueiro que viria ao Brasil. Manet passou meses a bordo da embarcação. Manet voltou para a Europa com cadernos repletos de esboços de tudo o que viu na viagem. A experiência, segundo diria, ajudou-lhe a tomar em definitivo a decisão de tornar-se artista.
Já adulto, incentivado por aquele tio e por um amigo de infância, Manet ingressou no ateliê do pintor francês Thomas Couture (1815 – 1879), de estilo clássico. Manet completaria sua formação fazendo inúmeras visitas ao Museu do Louvre, onde copiava as obras dos grandes mestres – e onde ficou amigo de outros jovens artistas, como Henri Fantin-Latour (1836 – 1904). Além disto, Manet viajou para vários países da Europa, onde tomou contato com mais obras clássicas, estudando especialmente as do espanhol Diego Velázquez (1599 – 1660).
A relação com Couture, embora Manet tenha permanecido por seis anos no ateliê deste, era tensa, já que o aprendiz trazia algumas ideias que desagradavam ao experiente pintor acadêmico, que bradava: “Você se recusa a ver a sucessão de tons intermediários que vão da sombra à luz!” Manet, de fato, preferia uma transição brusca da luz para a sobra, pois achava que o excesso de cores intermediárias enfraquecia o efeito da luz. Para Manet, o verdadeiro mestre, neste quesito ao menos, era Eugène Delacroix (1798 – 1863).
Em 1856, então, Manet montou seu próprio ateliê. Ao sair do ateliê de Couture, disse que este parecia “um túmulo”.
Cinco anos depois, Manet conseguiu com que duas obras suas fossem aceitas no Salão de Paris – e “O cantor espanhol” (1860) receberia uma menção honrosa. A outra obra aceita foi o retrato de seus pais.
Antes, entretanto, em 1858, a academia havia recusado “O bebedor de absinto”, obra em que Manet já revelava o seu próprio estilo. O tema da obra, entretanto – um alcoólatra! – deve ter chocado a banca. Delacroix seria o único a defender Manet. Um dos que votaram contra Manet foi… seu antigo tutor, Couture!
Portanto, para ser enfim aceito no Salão, Manet teve de ceder um pouco, tanto na técnica quanto na temática. Ser aceito era quase crucial para a sobrevivência financeira de um pintor. Como escreveu Fantin-Latour, em uma carta a amigos ingleses, descrevendo a vida parisiense: “Não se vende nada, mas aqui há liberdade e gente lutando, aplaudindo…”
Manet, nesta época, frequentava um grupo parisiense de intelectuais que incluía os escritores Charles Baudelaire (1821 – 1867) e Émile Zola (1840 – 1902).
“Música do Jardim das Tulherias” (1862) foi a primeira grande obra de Édouard Manet a retratar a vida na cidade – e contém retratos de Baudelaire e do pintor francês Henri Fantin-Latour (1836 – 1904), além de um autorretrato.
Baudelaire seria um bravo defensor público de Manet. Em um artigo de jornal, sugeriu, sobre o pintor: “O verdadeiro pintor será aquele que puder mostrar-nos o lado épico do cotidiano, levando-nos a entender como somos grandes e poéticos em nossas gravatas e sapatos engraxados.”
Enquanto tentava se estabelecer profissionalmente, em 1863, aos 31 anos, Manet casou-se com a professora de piano de sua família, Suzanne Leenhott, com a qual já tinha um longo caso – e um filho ilegítimo de 11 anos. O pai de Monet não aceitava que a relação fosse assim assumida e foi apenas a morte do patriarca que o pintor a oficializou.
Neste mesmo 1863 acontece o primeiro grande escândalo da vida artística de Édouard Manet, com a obra “Almoço sobre a relva” (“Le déjeneur sur l’herbe” – inicialmente, “Le bain”) (1863).
“Almoço sobre a relva” teve de ser exibida no Salão dos Recusados (“Salon des Refusés”), cuja criação foi proposta por Napoleão III. Naquele ano, o número de recusados pelo Salão foi altíssimo e a gritaria dos artistas foi grande, o que levou o imperador a financiar uma mostra paralela – e que o público julgasse se as obras recusadas tinham mérito ou não. Além de Manet, expuseram no Recusados outros artistas que posteriormente seriam incensados, como o próprio Fantin-Latour e Paul Cézanne.
Além de “Almoço”, Manet enviou mais duas outras obras para o Recusados, incluindo “Victorine Meurent em traje de toureiro”. Victorine era a modelo favorita de Manet, na época.
“Almoço” é uma grande mostra do seu estilo típico de Manet: grandes placas de cor e uma paleta limitada; luzes e sombras intensas, uso amplo da tinta preta; pinceladas fortes, pouca preocupação com as linhas e com a tridimensionalidade, com a perspectiva, com escala; cenas (mais ou menos) da vida urbana. A obra, que tinha escandalosos 2,6 metros de largura, chocou a crítica mais por este estilo do que pelo conteúdo, em si, da obra, embora este também tenha gerado reações indignadas: uma mulher nua, apenas, não chocaria, mas ela conversando tranquilamente com dois homens vestidos, repetindo poses de obras clássicas de Rafael e Ticiano, tudo isto gerou uma grande estranheza.
Nem todas as obras do Salão dos Recusados foram recusadas por serem iconoclastas. Algumas o foram simplesmente por serem mal-executadas, mesmo, para os padrões do salão oficial. Assim, estar nos Recusados em geral significaria apenas que uma obra seria vista com desdém. Uma piada dizia que a única coisa que o público aprovou, na mostra, foi o nome… Os artistas, por sua vez, também desdenhavam o público, “uma enxurrada de gente estúpida que irrompeu aqui para ridicularizar tudo”, nas palavras de Astruc.
Mas nenhuma obra dos Recusados seria recebida com tanta raiva quanto a de Manet. Afirma-se que até o imperador declarou que a obra era indecente!
Toda esta reação contra “Almoço na relva” contrariou Manet, que, aparentemente, sinceramente esperava que a obra fosse bem recebida. Ou seja, o artista Manet inovava, mas não queria chocar o sistema. Há quem acredite, entretanto, que a provocação tenha sido voluntária – será que o inteligente Manet não conhecia os padrões esperados?
Então veio “Olímpia” (1863), enviada dois anos depois para apreciação da banca oficial. A obra, de quase 2 metros de largura, se baseava na clássica “Vênus de Urbino”, de Ticiano (c. 1490 – 1576), que Manet havia estudado em Florença – obra que também foi objeto de releitura de Goya (N – M) em “Maya desnuda” (ano). Na obra de Manet a deusa virou uma “cortesã” (isto é, uma prostituta), que olhava o espectador de modo arrogante, talvez convidativo. E recebia flores, talvez enviadas por um cliente.
Sabe-se lá como, a obra foi aceita no salão oficial, mas a recepção à pintura foi extremamente hostil. Afirma-se, verdade ou não, que a obra teve de ser protegida de pessoas que queriam atacá-la com suas bengalas e guarda-chuvas…
Os críticos da época, acostumados com determinado tipo estilizado de pintura do feminino – como visto em “O banho turco”, de Jean-Auguste Dominique Ingres (1780 – 1867), pintada um ano antes –, invariavelmente compararam “Olímpia” com um cadáver:
“A expressão no rosto é de alguém prematuramente envelhecido e depravado; a cor putrefata do corpo lembra os horrores de um necrotério” (Victor de Jankovitz);
“Esta Vênus primitiva (…), exposta e completamente nua na cama como um cadáver.” (Geronte);
“A multidão se aglomera diante da escandalosa ‘Olímpia’, do monsieur Manet, como espectadores no necrotério.” (Paul de Saint-Victor);
“O rosto dela é estúpido e sua pele, cadavérica… ela não se parece com um ser humano.” (Félix Deriège)
“Uma cortesã com mãos sujas e pés enrugados… exibe o tom lívido de um cadáver à mostra no necrotério.” (Ego)
Não é possível sabermos até que ponto todos originalmente acharam “Olímpia”, de Édouard Manet, parecida a um cadáver – ou até que ponto a opinião inicial de um influenciou a de outro.
Coitada de Victorine Meurent. Deve ter sofrido ao ler as críticas, já que ela fora a modelo para as duas escandalosas telas. (Ou talvez ela tenha achado bom peitar, literalmente, o sistema?)
Já as duas obras, hoje em dia, ocupam lugar de destaque no Museé d’Orsay, em Paris. Na verdade, com a chegada dos impressionistas, Manet passou até a ser bem visto pela crítica. Manet não era tão ruim assim, como estes, para os acadêmicos.
Porém, na época de “Olímpia”, quem teve de defender Manet, quase sozinho, foi Baudelaire: “Esses burgueses imbecis que repetem constantemente as palavras ‘imoral’, ‘imoralidade’, ‘moralidade na arte’ e idiotices semelhantes me lembram uma meretriz de cinco francos que foi comigo ao Louvre pela primeira vez na sua vida. Lá, diante de quadros e estátuas imortais, ela corou, cobriu o rosto e, puxando-me a manga, perguntou como era possível mostrar tanta indecência em público.”
Émile Zola foi outro a defender Manet – e perdeu seu emprego no jornal.
Se Manet queria a fama, conseguiu – embora não da forma desejada…
Em 1867, quando o Salão rejeitou “O tocador de pífaro” e outra obra, Manet resolveu construir um pavilhão em uma praça e expor ali as suas obras. Por pressão política, entretanto, foi impedido de expor “A execução de Maximiliano”, terminada às pressas, retratando um evento ainda quente. Maximiliano era irmão do imperador austríaco e havia assumido o governo México, com apoio militar de Napoleão III. Entretanto, por exigência americana, os franceses deixaram o México – e Maximiliano seria capturado e fuzilado.
É por todos estes escândalos, por esta ruptura com o presente e com o passado que, para muitos, Édouard Manet é considerado o pai do Modernismo. Entretanto, esta paternidade é disputada por muitos. Outros historiadores a dariam a Gustave Coubert (1819 – 1877), que deliberadamente queria romper e chocar; outros, a Claude Monet (1840 – 1926), criador do Impressionismo; outros, por fim, ao espanhol Pablo Picasso (1881 – 1973), patrono do Cubismo… Enfim, talvez seja mais justo dividir esta paternidade entre todos estes e mais alguns, já que movimento algum raramente foi filho de um único pai…
Fato é que, após todos estes escândalos, Édouard Manet arrebanhou uma legião de jovens artistas, que se tornaram seus fãs, incluindo Claude Monet e colegas criadores do Impressionismo.
Porém Manet nunca expôs de forma independente, como os fãs que se tornaram seus amigos. Ele sempre quis vencer o sistema por dentro. Contudo, Manet apoiava os impressionistas e adotou algumas de suas ideias, como a pintura ao ar livre, assim como eles adotaram algumas das suas, como o retrato de cenas cotidianas e pouca fixação à técnica clássica. Manet dizia que a luz era o principal ator em suas obras – e nenhum grupo venerou a luz mais do que os impressionistas.
Para Manet: “Não se deve pintar o objeto, mas o efeito que ele produz.”
Manet e Monet chegaram a trabalhar juntos e, em 1874, Manet retratou a cada um dos dois sobre um barco – Monet pintando. Neste ano ocorreria a primeira mostra dos impressionistas.
Manet também foi inovador ao incentivar uma rara mulher artista à época, Berthe Morisot, também impressionista, que viria a se casar com seu irmão Eugène. Manet conheceu Morisot enquanto esta pintava no Louvre – e a artista serviria de modelo a vários quadros do pintor.
A relação de Manet com o sistema sempre foi dúbia, oscilante. Em alguns anos, ele era aceito no Salão – em outros, recusado e esculachado, e se enfurecia.
Manet, por estar, de certa forma, enfrentando o sistema, era um dos líderes do chamado “Grupo de Batignolles” – nome da rua onde ficava o Café Guerbois, onde se encontravam.
A Guerra Franco-Prussiana separaria temporariamente o grupo. Monet e Pissaro fugiram para a Inglaterra. Bazille morreu. Já Manet, que era um republicano, se alistou na Guarda Nacional, intentando defender Paris da invasão alemã.
Após a guerra, a tensão entre os jovens artistas e o Salão continuaram. Até que resolveram boicotar o evento oficial e realizar exposições alternativas – menos Manet, que continuava a querer ser aceito. Ele foi o único do grupo a não expor a famosa mostra de 1874, data marco do início do Impressionismo. Na próxima seleção oficial, apenas um dos três quadros enviados por Manet foi aceito.
Lutando contra as convenções sociais de sua época e de seu meio, mas ao mesmo tempo aceitando-as. Buscando liberdade de expressão, porém simultaneamente desejando ardorosamente ser aceito pelo sistema. Demandando reconhecimento, porém incapaz de fazer concessões.
Manet conseguiu, ao mesmo tempo, agradar e desagradar os velhos e os novos. O impressionista Degas dissera sobre ele: “Ele não dá uma pincelada sem pensar nos mestres.”
Mallarmé assim resenhou o pintor: “No estúdio, liberou a fúria na tela vazia, com tal confusão que parecia nunca ter pintado antes.”
No ano seguinte, após ter outra obra rejeitada, Manet organizou novamente uma exposição particular, que recebeu 4 mil visitantes. Entre estes estava Méry Laurent, que viria a se tornar amante do pintor e seria retratada em algumas pinturas deste.
Em 1881, enfim, a redenção. Recebeu uma medalha por suas obras “Pertuiset vestido como caçador” e “Retrato de Rochefort”. A medalha significava que Manet não precisaria mais submeter mais suas obras ao júri – os agraciados com o prêmio tinham suas obras automaticamente aceitas em eventos posteriores.
Porém Manet não teria muito tempo para desfrutar da glória que sempre buscou.
Uma das telas mais conhecidas de Édouard Manet, “Bar em Folies-Bergère” foi pintada em 1882, a maior parte de memória, quando o pintor encontrava-se muito doente, sofrendo de gangrena há alguns anos. Talvez o quadro tenha sido causado pela sífilis. Por conta dele, Manet já vinha pintando com dificuldade nos últimos anos.
A moça tem um olhar distante, parece estar pensando em algo. Como a imagem do seu lado direito parece ser um reflexo de um espelho, mas a posição da garçonete não é a mesma, a interpretação habitual do quadro é de que ela se recorda de alguma conversa com algum cliente.
Manet talvez também pensasse no tempo perdido. Neste mesmo 1882, ele foi condecorado com a Legião de Honra. Após a cerimônia, queixou-se que a comenda vinha “tarde demais para compensar vinte anos sem reconhecimento”.
Édouard Manet morreu no ano seguinte, em Paris, com apenas 51 anos.
“Olímpia” foi levada para o Louvre, onde ficaria em exibição permanente.